VER

by M. C. Escher (1898-1972), artista holandês

Olhos para não ver. Por Myrthes Suplicy Vieira

… Eu estava diante de um muro muito alto, com um grande pórtico central, onde se podia ler a inscrição “Escola de Não Ver”. Curiosa, resolvi escalar o muro para tentar descobrir que tipo de aprendizagem se desenrolava lá dentro…

by M. C. Escher (1898-1972), artista holandês

 Certa vez tive um sonho muito estranho e simbólico, que minha terapeuta chegou a definir como “esquizofrênico”. Ele foi assunto de muitas sessões e passou por várias interpretações que nunca me satisfizeram. O desconforto que senti então me acompanha até os dias de hoje.

Eu estava diante de um muro muito alto, com um grande pórtico central, onde se podia ler a inscrição “Escola de Não Ver”. Curiosa, resolvi escalar o muro para tentar descobrir que tipo de aprendizagem se desenrolava lá dentro. Encarapitada no alto do pórtico, pude ver que se tratava de um enorme pátio de palácio chinês, parecido com o do filme O Último Imperador. Ocupando boa parte do espaço estavam perfilados vários batalhões animais, separados por espécie, em treinamento. Havia um batalhão de galinhas, outro de cavalos, e assim por diante.

Ao comando de início do treinamento, cada batalhão se envolvia na tarefa de destruir partes do corpo de seus colegas de espécie. Estranhamente, não havia fúria no ar, apenas o procedimento burocrático, metódico e persistente de garantir a destruição macabra dos restos de iguais. As galinhas bicavam as partes do corpo de outras galinhas. Os cavalos pisoteavam as patas de outros cavalos. Eu acompanhava estupefata os movimentos de cada batalhão sem conseguir atinar com o propósito daquilo tudo. Se já estavam mortos e esquartejados, para que se dar ao trabalho de estraçalhar o que restou deles? Não fazia sentido.

De repente, me dei conta de que não havia ali um batalhão humano. Por que eles estavam ausentes se a destruição insana de indivíduos da mesma espécie é característica dos animais ditos racionais? Nunca soube de instinto de aniquilação dos corpos de semelhantes entre os animais de espécies filogeneticamente inferiores, mas estava farta de testemunhar esses atos de barbárie entre seres humanos. A coisa fazia menos sentido ainda. Fosse como fosse, a proposta da Escola de Não Ver parecia estar sendo efetivamente cumprida.

Ao fundo do pátio, era possível ainda ver escadas que produziam a ilusão de ótica de movimento ao mesmo tempo ascendente e descendente, como as ilustradas pelo artista gráfico Escher. Ou seja, elas não davam em lugar nenhum, voltava-se sempre ao ponto de partida. Era impossível sair do pátio e escapar da sorte daqueles batalhões.

A coisa toda só começou a fazer sentido quando, muitos anos mais tarde, me deparei com uma frase do próprio Escher pouco antes de morrer: “Deus não pode existir sem o mal e, desde que se aceite a ideia da existência de Deus, tem-se de aceitar também a do mal. É uma questão de equilíbrio. Essa dualidade é minha vida”.

O tema da presença simultânea do bem e do mal na estrutura psíquica humana também sempre me instigou. Da psicanálise à antroposofia, uma constatação: não queremos ver nosso lado sombrio, nos recusamos a entrar em contato com nossas pulsões de morte, com o desejo de extermínio do outro. Achamos mais fácil dividir a humanidade entre pessoas de bem e do mal. E o que isso tem a ver com a visão? Vou tentar explicar.

Dos pelos menos 5 sentidos que herdamos ao nascer – digo ‘pelo menos’ porque já há várias teorias científicas propondo a existência de cerca de 9 sentidos na espécie humana – a visão desde logo adquire um caráter crucial, tão importante para nossa interação bem-sucedida com a sociedade como o faro para os animais. É através dela que nos conectamos com a realidade exterior desde os primeiros minutos de nossa existência. Por razões ainda não muito bem explicadas, ao longo da vida a visão vai ganhando um caráter autoritário, quase ditatorial, podendo minimizar ou até mesmo eliminar por completo as percepções oriundas de outros órgãos dos sentidos. Se uma visão lhe agrada, você pode deixar em segundo plano o cheiro, o gosto, o tato e o som que a acompanham e que podem eventualmente lhe desagradar.

Na faculdade, fazíamos uma experiência para demonstrar como isso funciona: apresentava-se a uma pessoa dois objetos de madeira, um cubo grande (mas oco) e uma bola muito pequena (mas sólida), e, depois de colocados um em cada uma de suas mãos, pedia-se que ela estimasse qual dos dois era o mais pesado. A resposta unânime era a de que o cubo era o mais pesado. Pedíamos então que a pessoa fechasse os olhos e repetíamos a avaliação sensorial. A resposta que se seguia era sempre a de que a bola era mais pesada. Ao abrir os olhos novamente, as pessoas costumavam se surpreender com a incompreensível disparidade de suas avaliações.

Outro dado que indica o absolutismo da visão é o de que ela desfruta de credibilidade instantânea, ao contrário do que tende a acontecer com outros sentidos. A linguagem cotidiana expressa isso de maneira exemplar: “Ninguém me contou, eu vi com meus próprios olhos”. Nessa equação, raras vezes entram em discussão os fenômenos de ilusão de ótica ou de distorções provocadas pelo ângulo de visão. Quando, no entanto, a informação vem pelo ouvido, pelo nariz, pelo paladar ou pelo tato, ainda há espaço para dúvida: posso não ter escutado direito, posso ter sido traída pelas circunstâncias ou por experiências anteriores.

Um enorme fator complicador dessa tendência no século 21 é que a tecnologia se concentrou quase exclusivamente no desenvolvimento de novas telas, reforçando dessa forma o caráter impositivo da visão. O aparecimento de aparelhos de realidade aumentada serviu para colocar ainda mais fogo num ambiente já inflamado. Técnicas avançadas de manipulação de imagens ampliaram absurdamente o poder da persuasão visual.

Com o advento da pandemia de covid, a imersão desenfreada no mundo virtual das imagens parece ter levado as pessoas a um estado paroxístico de insensibilidade – e de desumanização -, talvez em função do desuso de outras fontes sensoriais de experiência. Se você não pode sentir o calor do toque das mãos ou do corpo de outras pessoas num abraço, não consegue sentir o cheiro do sangue quando o outro é esfaqueado ou baleado, nem ouvir seus gritos de horror, tudo se transforma numa experiência inconsequente, característica dos jogos eletrônicos.

A coisa é tão grave que cheguei a formular para mim mesma o conceito de ‘nova forma de cisão esquizofrênica’ para explicar o fenômeno. Já não conseguimos distinguir a realidade ‘real’ da realidade virtual. Somos induzidos a experimentar novas situações pelo simples prazer da experiência, por mais extremas que elas sejam. O problema é que as imagens não têm substância nem ética incorporada. Cabe a cada um atrelar significados a elas e entender como as consequências se encaixam na sua escala pessoal de valores.

Piorando ainda mais esse estado de coisas, sempre foi muito difícil para a maioria apoiar-se naquilo que os espiritualistas chamam de “olhos da alma” para ampliar as oportunidades de autoconhecimento. A visão, assim como os demais órgãos dos sentidos humanos, é voltada para a exterocepção, isto é, para fora, mas é de pouca valia para visualizarmos o que temos por dentro. Olhar para dentro e encarar a frio quem somos de fato quando não há outros olhos por perto é algo que costuma causar pânico, dado o risco de destruição de nossas ilusões mais caras e de muitas de nossas crenças mais arraigadas.

Como diria Fernando Pessoa, “para que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?”

Avatares não olham para dentro, não é mesmo?

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(*) Myrthes Suplicy Vieira  – é psicóloga, escritora e tradutora.

 

4 thoughts on “Olhos para não ver. Por Myrthes Suplicy Vieira

  1. Prezada Myrthes. Fazia tempo que eu não encontrava aqui um artigo teu, e é com alegria que o faço agora. Você parece ter estado ausente por uns tempos, e espero que o presente artigo indique que você voltará a oferecer tua inteligência e tua sensibilidade aos leitores do Chumbo. Agradeço-lhe, no que me concerne e à minha mulher. Mas não apenas…

    Aproveitando a oportunidade de a reencontrar aqui, gostaria de te contar um « caso ». Posto que literatura « científica » ainda é coisa pesada para uma menina de 16 anos, minha mulher (isso tem uns três meses) andava procurando na internet alguma coisa em português para recomendar leitura à nossa afilhada. Já pensando em universidade, a menina cogita atualmente a ideia de seguir os passos dessa sua tia e enveredar pelo mundo dos mistérios psíquicos, da natureza reflexiva dos homens, da investigação do que há em cada um de nós de mais íntimo, imaterial, irredutível. E assim, procurando textos curtos que pusessem nossa afilhada no caminho da boa reflexão, minha mulher não demorou a encontrar alguns. O resultado final, que reuniu desde introduções de livros didáticos, excertos de textos para estudantes universitários, e chegou a artigos publicados na imprensa, tem servido até hoje para que a menina se apresente à linguagem, aos temas e às questões que a grande área das psicologias abriga. Acho que teremos em breve mais uma psicanalista – ou psiquiatra – na família.

    A ideia de te contar esse casinho singelo advém de um fato particular : alguns dos artigos que minha mulher apresentou à menina vêm a ser coisas que você escreveu, e que, se minha mulher não se engana, foram publicados no Chumbo e num blog de um colégio em SP. Na certeza, mesmo, lembro-me de dois títulos : « Desculpe o transtorno, estou em reforma » ; e « Das intenções ». Mas há mais. Deve haver uns quatro ou cinco. Minha mulher recomendou que nossa afilhada lesse teus artigos com especial atenção, posto que eles tecem, com habilidade e inteligência, narrativas que põem em questão um sofisticado saber psicanalítico aplicado. Nossa afilhada os guarda com cuidado. Sempre volta à leitura. E agora por minha conta (mas sem nenhum risco), adiciono à coleção este belo « Olhos para não ver ». Ela vai adorar.

    —-

    PS. Lendo este teu artigo que tematiza o olhar,
    lembrei-me de uns versinhos de Cecília Meireles :

    « O lugar da tua presença
    é um deserto, entre variedades:
    mas nesse deserto é que pensa
    o olhar de todas as saudades. »

    1. Nossa, com comentários elogiosos tão empolgados como os seus e os da Marli, vou ter de voltar à terapia para tratar minha vaidade intelectual e prepotência! Estou certa de não merecê-los (sofro da síndrome da impostora), mas ao mesmo tempo fico feliz de poder ajudar sua afilhada a se familiarizar com as necessárias reflexões que quem se aventura pelos meandros da psicologia tem de estar disposto a fazer.
      Um amigo que se prontificou a fazer a revisão do meu livro disse certa vez que escrevo como quem conversa (adorei a analogia!) e que, graças a isso, posso fazer divulgação científica para leigos.
      Fiquei surpresa de sua esposa ter encontrado antigos textos meus tanto em um blog pessoal que já desativei quando o de uma escola que só pode ser a Caetano de Campos. Ela também frequentou o IECC ou foi só uma indicação do Google? Agradeça a ela por usá-los como referência. Fico emocionada e lisonjeada com tanta atenção.

  2. Cara Myrthes ; por favor, não agradeça pelo « éloge » que lhe é devido. Teus artigos são ótimos. Bem, até onde sei, minha mulher encontrou alguns deles no Chumbo (entre os sites brasileiros, é dos poucos que acessamos com frequência), e outros tantos pelos links do Google. Sim, trata-se do Caetano de Campos – mas, não, ela não foi aluna desse colégio. Eu sou de SP, mas ela, gauchíssima, cursou sua formação básica em PoA.

    Estamos desde já à espera dos próximos artigos.

    À bientôt, j’espère !

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