Nas ruas do silêncio.

Nas ruas do silêncio. Por Antonio Contente

… ruas do silêncio…esperava a chegada de dias mais frios para reiniciar minhas caminhadas nas madrugadas. É que, palmilhando as calçadas congeladas naquelas horas apenas aparentemente mortas, você anda sobre suspiros e silêncios…

Nas ruas do silêncio.

Na verdade, amigos, esperava a chegada de dias mais frios para reiniciar minhas caminhadas nas madrugadas. É que, palmilhando as calçadas congeladas naquelas horas apenas aparentemente mortas, você anda sobre suspiros e silêncios. Suspiros d’amor que escapam de amantes tardios; silêncios de sonhos que escorrem, como fios de água de chuvas mágicas, nos beirais dos telhados que abrigam os renitentes perseguidores das imponderabilidades.

Quanto mais enregelantes as madrugadas melhor, pois as baixas temperaturas impedem qualquer outra aparição que não seja a minha a bater pés sobre aquilo que me parece um mundo em formação, gênese, princípio. A melhor hora para essas incursões, envolvido pelos gelos que a Antártida nos manda, é entre quatro horas e cinco e meia, com resvalos até seis, quando, no Outono, ainda está escuro. O meu roteiro é por ruas tornadas mais íntimas pelo solfejar, em moderato cantábile, das sibipirunas e oitis. Seus galhos e suas folhas, nesse horário, deixam escapar um aroma que conduz à lembranças marcantes. De realidades efetivamente vividas, com outras que ficaram no limiar das densidades do real com a suavidade do imaginário. O palpável e o impalpável se unem para escorrer sobre muros que se debruçam por pequenos jardins. Sempre tão bem cuidados em frente de casas pequenas que guardam, pela simplicidade do aspecto, a grandeza de serem abrigos de inesquecíveis amores. Para os quais basta o frescor de dois canteiros, uma porta, uma janela e um beiral; este para transformar em cascata as chuvas que umedecem as tardes, antes do canto dos bem-te-vis. Os alados arautos do bom tempo.

Num certo trecho do caminho há uma espécie de praça, antes de chegar na rota que leva ao Shopping Iguatemi. É a hora de olhar para o alto porque a área, quase sem iluminação, nos abre um céu quase absolutamente crivado de estrelas. Navegante solitário no mar da solidão imensa é pelos astros que me guio para o rumo certeiro de uma casinha, logo à direita. Permanece fechada faz muitos anos, mas o jardinzinho na frente está sempre bem cuidado; e as roseiras, nas épocas devidas, exibem pétalas com o vermelho de alguns hibiscos de Paul Gauguin. Nas quais, ao amanhecer, se avista de longe o brilho das gotas d’orvalho.

 O que contam é que certo andarilho como eu viu, na madrugada sobre a qual ainda escorria o que sobrou do luar, um casal de idosos, ambos com os cabelos muito brancos, a cuidar dos viçosos canteiros. Ele se enterneceu e permaneceu olhando por algum tempo, pois a dupla de veteranos, de vez em quando, trocava beijos de incomparável textura. E tão impressionado o camarada ficou que, dias depois, em papo com antigos moradores do bairro, descreveu com detalhes o local, a casinha, e perguntou quem eram os moradores que madrugavam a cuidar de plantas; e que se amavam tanto.

         — Ah – veio a resposta – é o seu Genival e dona Creusa.

         — Achei incrível – o indagador prossegue – eles a tratar do jardim naquele horário.

         — Mas é só quando há luar – o informante prosseguiu.

         — Puxa, que beleza. Se em alguma outra oportunidade eu passar por lá de dia e avista-los, farei questão de cumprimentar.

         —Tudo bem, mas isso não vai acontecer.

         — Por que, de dia eles dormem?

         — Dormem de dia e de noite, pois já faz mais de cinco anos que morreram. Dona Creusa foi a óbito de manhã, e seu Genival, varado de paixão, deu o ultimo suspiro à tarde. Agora há quem os veja, em certas noites de lua, no jardim da casa que os filhos mantêm fechada; porém arrumada como os pais deixaram…

Agora sempre que passo diante da casinha, até lá guiado pelas estrelas, se ainda se esparramam restos de luar paro e fico olhando. Porém, o máximo que já vi foram gatos, além das sombras, com formas quase humanas, dos galhos de algumas amoreiras que vivem na lateral do jardim. Mas, a realidade ou a lenda do que ali teria ocorrido passou a dar ânimo a um outro desejo que me persegue, nas caminhadas geladas. E que de mim toma conta sempre que chego à avenida José Bonifácio, que corre na parte mais alta daquela área do bairro.

 Pois bem, dali, mesmo que não haja lua, avisto, ao longe, esparramadas áreas, tanto à direita como à esquerda, cobertas por vegetação que medra sobre algumas suaves elevações. Fui tomado pelo desejo a que me refiro acima quando, numa das minhas madrugadas vi o local envolvido por densa neblina. Imediatamente fui remetido à esperança de que, de repente, como no belo filme “Brigadoon” (“A Lenda dos Beijos Perdidos”), que Vincent Minelli tão maravilhosamente dirigiu em 1954, com Gene Kelly e Cyd Charisse, surgisse do meio da névoa uma bela pequena cidade que poderia ser a síntese de um país. Formado por casas com apenas um jardim, porta de entrada e janela, em ruas limpas e livres de qualquer barulho. Mundo sem disputas, sem pestes, sem políticos, sem Congresso, sem milicos, sem STF e sem dinheiro circulando.

O problema é que, para os males de minhas penas, não tem ocorrido de sermos cobertos por nevoeiros. E ontem, quando a sensação térmica, com o ventinho que soprava desceu bastante, acabei voltando para a frente da residência onde moraram dona Creusa e seu Genival. Acho que será mais fácil vê-los, a qualquer instante, no jardim. E, quem sabe, até poder a eles perguntar como é que se faz para vivenciar um amor que continua vivo como as roseiras. Viçosas, mesmo depois da morte de quem as plantou.

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

 

 

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