
Papa Francisco, um advogado. Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
Para o Papa Francisco e para o advogado,
todos devem ser acolhidos e amparados sem que se avalie sua conduta moral.
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO ESTADÃO, ESPAÇO ABERTO, OPINIÃO, EDIÇÃO DE 17 DE MAIO DE 2025
Pode-se dizer que ele não é formado em Direito. É verdade. Não há notícia de que tenha cursado faculdade de Direito, mas sim as de Filosofia e Teologia.
Portanto, Francisco não exerceu a profissão de advogado, mas o sacerdócio da advocacia.
Sua formação, não a técnica ou jurídica, mas aquela refletida pela sua conduta, pelo seu pensamento, ideário de vida, visão do mundo, relações com seus semelhantes, preocupação com os desvalidos e com as minorias, com a liberdade e com a democracia, mostra uma clara simetria com a formação do advogado. Ele exerceu o seu sacerdócio voltado para o amparo aos necessitados, assim como nós, que nos dedicamos àqueles que não têm condições para reivindicar os seus direitos. Somos a sua voz perante a Justiça.
Não estou afirmando que as virtudes de Francisco estejam reproduzidas pelo comportamento individual de cada advogado. Vejo, sim, alguns traços característicos do advogado vocacionado e inerentes à natureza da advocacia que nos identificam com a conduta humana e sacerdotal de Francisco.
Anteriormente, o papa Paulo VI, falando aos advogados num congresso, nos comparou ao sacerdote, pois, disse ele, o advogado empenha a sua existência para “assistir aqueles que não estão aptos a se defender por si mesmos” e necessitam ser “guiados, aconselhados, defendidos no labirinto das relações humanas”.
É exatamente esse o nosso papel. O primeiro advogado foi aquele que emprestou a sua voz, inteligência e coragem em defesa de alguém que não podia se defender.
Nós continuamos a falar pelos que não têm voz, que são os cidadãos, os jurisdicionados. Postulamos em seu nome por seus direitos e interesses, batendo às portas do Poder Judiciário. Aliás, o jurisdicionado constitui a razão de ser da Justiça.
Francisco, ao sair do trono papal para ir às ruas, estava à procura daqueles que não estavam “aptos a se defender”. Nos seus 12 anos como pontífice, tornou-se a voz dos desvalidos, dos rejeitados, dos postos à margem da sociedade.
Trouxe para dentro da Igreja os que mal chegavam às suas portas, pois as suas angústias e sofrimentos não tinham lugar de realce nas pautas clericais.
A advocacia, por sua vez, acolhe aqueles que estão desesperados e batem às nossas portas na tentativa de encaminharmos seus conflitos, sejam eles de grande ou de pequena envergadura. Liberdade, família, patrimônio e outros bens de vida são colocados em nossas mãos para serem protegidos ou recuperados. Os advogados tornam-se os depositários das desgraças e das misérias do homem, que nos transfere a carga de seus sofrimentos, angústias e esperanças.
Para o papa Francisco e para o advogado, todos devem ser acolhidos e amparados sem que se avalie sua conduta moral. Ele não defendia o pecado, mas sim o pecador. Nós não somos defensores do crime, mas somos porta-vozes dos direitos e das suas garantias do acusado, defendemos o seu direito à plena defesa.
Um outro traço comum da advocacia com o pensamento de Francisco é a ausência de maniqueísmo. Sua visão do mundo e do homem foi abrangente e global, e não apenas dualista. Colocou a Igreja a serviço de todos, sem distinguir o bom do mau, o belo do feio, o pior do melhor, o certo do errado, o rico do pobre. Desprovido de extremismos, tinha a perfeita noção da inexistência do único, do excludente. Sob qualquer rótulo havia sempre o ser humano.
Assim somos nós os advogados. A sociedade é composta por toda espécie de homens e nós não os discriminamos para cumprir o nosso papel de postulantes em seu nome. Defendemos os seus interesses pois sabemos que não há o bem ou o mal absolutos.
Por tais razões, Jorge Bergoglio, antes mesmo de assumir o Vaticano, constantemente visitava os redutos de Buenos Aires onde havia miséria.
Como papa, continuou sua jornada agregadora. Recentemente, antes de morrer, visitou um presídio e afirmou: “Toda vez que entro num lugar como este, me pergunto por que eles, e não eu”.
Esse seu questionamento contém uma verdade que os advogados criminais não se cansam de divulgar, especialmente para os que se julgam distantes do sistema penal e são indiferentes ao direito de defesa e às garantias dos acusados. O crime é um fenômeno social, humano. Ninguém em sã consciência poderá afirmar que jamais será acusado da prática de um delito.
Ao manifestar-se sobre os sistemas penal e carcerário, emitiu opiniões rigorosamente em sintonia com aquilo que pregamos. Falou como um advogado. Criticou a pena de morte; proclamou a dignidade do encarcerado; disse ter esperança no recomeço; enalteceu a importância da educação e da assistência aos presos; pregou o diálogo e o acolhimento do egresso pela sociedade.
Num discurso a uma delegação de advogados, fez uma conclamação exatamente coincidente com a finalidade de postularmos em prol de outrem.
Ele nos incitou para que perseveremos “no exercício de vossa profissão, orientada no serviço da verdade e da justiça, necessária para construir a paz no mundo e a harmonia nas nossas sociedades”.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.