Djin, djan, tchn

… Algumas vezes o som sai mais parecido com djin e outras como djan ou tchn. Só sei que é automático: toda vez que eu me condeno por alguma coisa – como ter esquecido um compromisso, ter derramado o café ou deixado a comida queimar, perder a cabeça e gritar com minha já assustada cachorra – produzo sem querer esse som…

E VOCÊ?

Djin, djan, tchn

Ainda não sei ao certo como grafar essa onomatopeia. Algumas vezes o som sai mais parecido com djin e outras como djan ou tchn. Só sei que é automático: toda vez que eu me condeno por alguma coisa – como ter esquecido um compromisso, ter derramado o café ou deixado a comida queimar, perder a cabeça e gritar com minha já assustada cachorra – produzo sem querer esse som.

Estou falando de um estalo de língua involuntário, que lembra mais ou menos aquele tapa na testa que sinaliza esquecimento, vergonha ou arrependimento. Uma voz interna repete: “como você foi fazer isso?”, “como você é idiota, atrapalhada e teimosa”, “você já está velha demais para ainda não ter aprendido autocontrole”.

Acontece também quando quero demonstrar lamento por ter recebido uma notícia triste, quando alguém me nega alguma coisa ou me acusa de algo injustamente, ou ainda quando assisto a alguma reportagem sobre guerras/genocídios, fome, violência contra minorias ou a estupidez de algum governante ameaçando cortar verbas para a educação, cultura, saúde ou assistência social – ou, pior, tentando impor um retrocesso em direitos humanos conquistados a duras penas. Ultimamente, como todos bem podem imaginar, a frequência desses estalos tem sido tão alta que no final do dia minha língua parece estar em carne viva.

Fico sempre extremamente curiosa para saber se mais alguém tem essa mania, ainda que não ouse perguntar pelo medo de estar constrangendo a pessoa ou de ela achar que eu penso que ela é louca. O mais perto que já cheguei de descobrir se há um equivalente desse tique nervoso entre nós ou em outras partes do mundo foi ao ver o famoso tsc, tsc, tsc, facilmente encontrado em gibis, principalmente americanos. Não sei por que esse jeito deles de grafar o som precisa ser repetido três vezes – deve ser por necessidade de enfatizar a discordância, a incompreensão ou por causa da típica mania de grandeza que eles têm, sabe-se lá.

No meu caso, o “djin” ou “djan” ou “tchn” acontece uma única vez a cada lembrança ou sensação de desalento. De qualquer maneira, me parece que a semelhança termina aí. Acredito que o “tsc” elevado ao cubo sinaliza mais propriamente a condenação de terceiros, enquanto meu estalo único indica no mais das vezes autorrecriminação e só eventualmente tristeza ou falta de esperança.

Mas, você pode estar se perguntando, que importância tem isso? Nenhuma, admito. É só a vontade de saber se já posso começar a frequentar as reuniões dos Neuróticos Anônimos ou se alguma outra alma perturbada pode querer me fazer companhia.

Essa coisa de sons onomatopaicos como grafados nas diferentes culturas me intriga desde sempre. Não entendo por qual razão nós juramos de pés juntos que o pato faz “quá, quá, quá” enquanto os americanos e ingleses acham que na verdade ele faz “quack, quack”. Para mim, esse seria logicamente o som de um pato com soluço, não é verdade? O mesmo se aplica ao “au, au” ouvido pelos brasileiros versus o “woof” (que, para mim, é o latido exclusivo de cães de grande porte) ou o “bark” ouvido pelos falantes da língua inglesa.

Outro dia, ouvindo um pássaro cantando claramente “bem-te-vi”, fiquei me perguntando como estrangeiros decodificariam esse som. Corri para o Google e descobri que eles o chamam de “kiskadee”, embora o som traduzido ao pé da letra desse algo como “I saw you well”. Que maluquice! Só falta agora descobrir que o “tsc, tsc, tsc” seja, na verdade, o meu “djin” ou “tchn”, como diriam os cariocas.

Da mesma forma, nunca consegui entender como alguém pede socorro urgente gritando “au secours”. Até terminar de pronunciar a expressão, a vítima já morreu, não é mesmo? É bem verdade que o “help” é mais direto e rápido quando comparado ao nosso “socorro”, mas que se há de fazer? Somos prolixos por natureza.

Isso tudo me ocorre em paralelo quando constato que hoje em dia se deve escrever “ensino a distância”, sem o acento. Para mim, duas frases com significado diferente poderiam ser escritas dessa forma: 1) Eu ensino [o conteúdo] a distância [entre dois polos], e 2) Eu ensino à distância [de longe].

Aliás, dentre todas as regras impostas quando da reforma ortográfica elaborada para aproximar o falar do português brasileiro e o português de Portugal, as duas que mais me incomodam desde sempre são a de “à distância” sem crase e o “para”, do verbo parar, igualmente sem acento – isso sem mencionar que é preciso colocar o chapeuzinho no verbo pôr para diferenciá-lo da preposição. Lembro que no primeiro dia de vigência da nova norma a Folha de S. Paulo escolheu como chamada principal a frase: “Passeata para a Avenida Paulista”. Ela poderia ser interpretada tanto como passeata em direção à Avenida Paulista quanto como passeata que interrompeu o trânsito na mesma avenida. Como distinguir entre elas?

Bom, por falta de um assunto mais estimulante, paro por aqui. Se uma pessoa misericordiosa achar por bem se manifestar em meu apoio, e criar coragem para me dizer que ela também passa os dias estalando a língua sem querer, vou ser eternamente grata. Já basta a desesperança de não ter dinheiro suficiente para retomar minha terapia.

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(*) Myrthes Suplicy Vieira –  é psicóloga, escritora e tradutora.

3 thoughts on “Djin, djan, tchn. Por Myrthes Suplicy Vieira

  1. Cara Myrthes. Pela distância, não posso me oferecer para te ouvir, mas, se pudesse, e meu trabalho de pesquisa não me tomasse o tempo que toma, faria isso com imenso prazer, na certeza de que aprenderia muito com você. Acho absurdo alguém não ter atendimento psicanalítico por causa de dinheiro. Se você morasse aqui, demoraria um pouco, mas não teria esse problema. Talvez até fosse atendida em casa (apesar do pastel de vento que temos por primeiro ministro ter sucateado a área do atendimento domiciliar de saúde na província). Em todo caso, seria muito gratificante para mim poder trocar palavras com você por email, por exemplo, se soubesse como te dizer aqui meu endereço sem correr o risco de ver gente não convidada participar da conversa. Gosto de conversar com quem tem interesses parecidos com os meus.

    No mais, penso que « ensino a distância » – incabível sem crase ! – pode ter ainda uma outra interpretação, além das citadas por você. Ensino a distância (como ensino a criança, por exemplo) : aqui, distância é quem, ou aquilo, que aprende. Não é só você que estranha essa forma sem crase. Li teu artigo ao lado de meu marido, e ele comentou algo sobre isso. A eliminação dessa crase, diz ele, constitui um desses inúmeros casos em que, para facilitar o uso aos que não estudam, ou estudam mal (simplificando a vida de professores super exigidos e sub pagos), e igualmente para discriminar menos os que erram (permitindo que permaneçam na universidade), simplifica-se tanto o objeto a ser estudado que isso acaba por destrui-lo. Meu marido, que, como professor, viveu muito mais tempo que eu no ambiente acadêmico, me diz que esse afrouxamento de regras e normas (não apenas no ensino da língua) já se tornou regra ali. Sinal destes tempos em que a « desafalbetização », mesmo na universidade, já é fato consumado. É pior no Brasil, eu sei, mas pode crer que aqui também acontece. Exemplo disso, nas escolas primárias e secundárias daqui, é o agora tornado obrigatório, para os estudantes, uso da segunda pessoa do plural (vous) quando falam a professores. Essa medida do governo provincial destina-se a um ambiente em que estudantes de todas as idades já usam apenas a segunda do singular (tu) para tratar professores nas escolas. É impressionante, pois há dez anos não era assim. Piorou muito com o tempo. Parece que o mundo moderno, custe o que custar (do ponto de vista de governos e elites intelectuais que os habitam), precisa ser ultra simplificado, esterilizado, o que também o torna, por isso mesmo, um pouco mais estúpido – como « ensino a distância » sem crase e « para » sem acento agudo bem o demonstram. E não é só no português, não. No francês isso também acontece.

    Seria esse o admirável mundo novo a que Huxley se referia, agora um pouco piorado, onde o « soma » já não se encontra apenas na massificação de ansiolíticos e tricíclicos, mas também na existência de regras que desregram, leis que legislam suas próprias inaplicações ? Sinceramente, o mundo antigo me parece melhor. Aquele pelo menos não eliminava crases, tremas e acentos como quem mata moscas nos intoxicando com o inseticida. Admirável Mundo Novo alertava sobre totalitarismos. O que temos hoje silencia as regras do alerta.

  2. Carla, acredite, o prazer e a capacidade de aprender uma com a outra seriam todos meus, caso fosse possível nos falarmos por e-mail, com ou sem terapia à distância.
    Aqui no Brasil, as crianças do ensino fundamental são incentivadas a chamar seus professores de “tio” e “tia”, talvez como tentativa de forçar uma intimidade que está muitas vezes longe de acontecer naturalmente.
    Eu acho que essa pretensa facilitação da linguagem é bem mais do que esterilização, é um projeto vinculado ao desestímulo do pensamento crítico. Li recentemente um artigo sobre esse tema que mostrava que, além da simplificação de palavras/expressões, hoje em dia não há compreensão (e, consequentemente, não uso) de tempos verbais. Destaco o seguinte trecho: “Menos palavras e menos verbos conjugados implicam menos capacidade para expressar emoções e menos possibilidades de elaborar um pensamento”. O autor é Christophe Clavé – que, se não me engano, é canadense. Tente localizar o texto dele, acho que você vai gostar.

    1. Cara Myrthes. Desculpe-me pela demora, mas desde que comentei teu artigo tive tanta coisa para terminar que apenas agora, ainda meio acordada, meio dormindo, posso dedicar à tua resposta uma pequena parcela da atenção que ela merece. Domingos pela manhãzinha, céu nublado, vento, 9 graus no termômetro em Morin Heights, tudo silencioso em volta. Demora pra esquentar o motor… Já se disse que é o Canadá é o país das marmotas. Devo ser uma. Bem, acho que entendo tua menção a Clavé (se é « canadien », não sei, mas parece que trabalha na Suíça). Conheço suas ideias muito panoramicamente, e, de fato, nunca as segui com tanta atenção (talvez devesse…). A ideia de que a simplificação do léxico decorre de uma gradativa eliminação de conceitos – ou que o empobrecimento do pensamento leva ao esquecimento das palavras, ou de suas formas corretas, ou de seus significados mais particulares – parece representar, para o bom analista, o efeito e a causa de certo uso instrumental (não poético) do língua, pois trata-se de um fenômeno sociológico totalizante : quando os « reformadores » da língua eliminam acentos, p.ex., facilitando a aproximação da forma escrita à oral, sabem bem por que o fazem, e penso que o argumento que lembrei antes – emprestado ao cientista social que vem a ser meu marido – exemplifica isso. Imagine o que ocorreria com levas e levas de estudantes brasileiros saídos do ENEM com notas baixas demais para tentar a USP, a UNICAMP, as melhores Federais… É preciso garantir a esses estudantes a ilusão de que um diploma da UNIP (ou de outras usinas de diplomas) os porá no mercado em condições de ocupar bons postos de trabalho (e assim, a posteriori, pagar as prestações daquele empréstimo do governo que injeta dinheiro público em escolas medíocres de 3º grau sob a alegação de que é preciso multiplicar a população universitária para democratizar a renda. O problema é que o país, que já é pobre, apenas despeja mais e mais dinheiro fácil nesses caça-níqueis cada vez mais ricos, e a estudantada mal formada continua agora como força de trabalho desempregada e endividada. Que, de quebra, agora já fala uma língua um pouco menor, e provavelmente ainda é habitada por um imaginário idem…).

      A pergunta que me fica é : como melhorar isso sem investir pesado na educação de base e nas políticas públicas que garantem a crianças e jovens pobres não apenas boas escolas, mas também condições materiais para que não tenham que trabalhar em idade escolar ? Como estas políticas são muito mais difíceis de realizar (se é que há vontade de as realizar), e o salvador despejo de dinheiro agrada a todos os envolvidos, os governos apenas reproduzem a fórmula que os aprisiona na fachada já empoeirada de suas boas intenções na esperança tola de que as próximas eleições os premiem. Não sei o que você pensa sobre, mas, de meu ponto de vista, este processo como um todo parece ser um bom exemplo de como as interações entre psiquismo individual e inconsciência coletiva (esta, tal como Lévi-Strauss a pensava, não como arquétipos junguianos, p.ex.) ocorrem reciprocamente, sem que a gente possa aprioristicamente apontar o início ou o fim do processo, ou da unidade que formam. O ovo estéril que nunca foi posto e a galinha infértil que nada bota… Sei lá ; é uma imagem que atrai. O que há por trás da eliminação de regras, de palavras, da simplificação vulgarizadora da gramática ? A intenção de fazer esquecer certos significados, certos afetos e desafetos, eliminar partes de um imaginário coletivo, ou a necessidade de ofertar empregos, facilitar o duro trabalho do ensino em todos os patamares pedagógicos, nivelar desníveis intelectuais e (in)competências técnicas, fomentar tolerância pública, incentivar o consumo das massas, barateá-lo (e, claro, barateá-las…) ? Creio que devem ser as duas coisas, e as duas sendo uma só, com o detalhe de que o processo nasce de decisões políticas que alteram as formas mercantilizadas da vida produtiva sem, é claro, tematizar suas origens : medos, frustrações, pulsões, traumas, recalques, fugas, racionalizações, paixões, intenções… O problema, penso, é que quando se tem dinheiro em jogo instrumentalizam-se até nossos pesadelos. Nesse cenário, o que me entristece é saber que colegas meus servem ao propósito de mapear, para os agentes do mercado, os caminhos da manipulação do afeto.

      Isso é apenas o que me entristece. O que mais me assusta é outra coisa. Todas estas minhas quase-reflexões ocorrem quando a chamada inteligência artificial ainda não produziu uma parte por milhão do que ainda fará conosco. Só pra introduzir a conversa, que espero desenvolver com você noutro dia : há alguns meses, a Meta, dona do facebook, produziu um experimento fascinante, justapondo dois computadores animados com IAs de origens diferentes para conversar via chatbots. Em tese, um pc não sabia da existência do outro, não desconfiava de que conversava com outro computador. As entradas de texto não estavam conectadas entre si por cabo. Os computadores não faziam parte de nenhuma intranet, ou seja, um não tinha acesso ao PIN do outro, nem faziam parte de uma mesma rede wifi. E a conversa se iniciou então, com um computador, num lugar, perguntando qualquer coisa ao outro, noutro lugar, tal como um consumidor faria ao teclar uma mensagem a uma loja ou a um banco, p.ex. Adivinhe o que aconteceu ! Em menos de um minuto, essas IAs de origens diferentes se reconheceram como tais e passaram a trocar mensagens segundo códigos e metalinguagens próprios, que elas elaboraram na hora, mantendo, pois, os observadores humanos do experimento absolutamente fora da « conversa ». Assombrados com o fato, os engenheiros da Meta, que não conseguiram traduzir ou entender o conteúdo aquela troca de mensagens, desligaram os computadores, e até agora se perguntam o que é que aconteceu ali. Um comunicado oficial, tímido e curto, destinado à comunidade de cientistas da computação que acompanharam o experimento, mencionou apenas que os resultados deveriam se explicar por alguma falha. O que não apagou aquilo que uma centena de observadores presenciou : as máquinas se comunicavam entre si, sem repetir frases ou termos técnicos conhecidos, sem repetir mensagens, sem entrar em loop (o que caracterizaria um bug presente no sistema), sem que vírus ou outras intercorrências possíveis interferissem no experimento. Sinceramente, quando ouvi a história da boca de um neurocientista norte-americano que conheço aqui na McGill, um arrepio me passou pela espinha. Meu marido (o redfox que você conhece daqui) me disse que já está se sentindo na história do The terminator, aquele filminho em que o Schwarzenegger faz o ciborgue que quer acabar com a gente a todo custo. E você, minha cara, o que pensa disso ? Não quero tirar teu sono, mas o meu piorou um pouco depois dessa historinha !

      Um forte abraço,
      (Desculpe pelo tamanho disto aqui !)

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