cristaleira da avó

A cristaleira da avó. Por Paulo Renato Coelho Netto

… a cristaleira da casa da minha avó parecia um cofre de vidro moldado à mão e esculpido em carvalho.

cristaleira da avó

Estrategicamente colocada em destaque na sala, a cristaleira da casa da minha avó parecia um cofre de vidro moldado à mão e esculpido em carvalho.

Porcelanas delicadamente desenhadas com finos fios dourados, entre talheres polidos e taças de cristal.

Como a faixa amarela no piso do metrô, havia um limite que não podia ser ultrapassado para chegar perto das antiguidades.

Um altar de objetos intocáveis duplicados pelo espelho ao fundo.

Dona Elvira Cox,  minha avó, dizia que não era para abrir a cristaleira, reforçada pela voz da minha mãe para não encostar.

A relíquia não se dava bem com as novas gerações.

Entre tacos de madeira e ladrilhos hidráulicos, tudo era envolvido em silêncio naquela casa.

A exceção vinha do quintal, na forma de água, escorrendo da mangueira que regava as plantas que tomavam conta da área aberta, incluindo uma enorme estufa, outro ponto tão sagrado com a cristaleira da sala.

A delicadeza das avencas com folhas que pareciam gotas de orvalho esmeralda.

Samambaias-de-metro das mais variadas.

Minha avó contava que samambaias gostam de sombra, pouco sol e umidade.

Até as plantas têm seus caprichos.

Havia um pé de romã inclinado sobre um portãozinho de ferro envelhecido, a fruta do Dia dos Santos Reis.

Na edícula, uma máquina de datilografia Remington dos anos 1950 em perfeito estado de conservação.

Na prateleira, atrás da mesa de madeira maciça, uma câmera fotográfica Rolleiflex com a qual meu avô, Carlos Silva Mattos (1902-1999), registrou boa parte da história da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (N.O.B).

A ferrovia foi construída no sul do território do então Mato Grosso unificado, entre Três Lagoas (MS) e Corumbá (MS) e do ramal de Campo Grande (MS) a Ponta Porã (MS).

Nascido em Taubaté (SP), meu avô trabalhou 37 anos na estrada de ferro.

Na casa, muitos livros. Dele ganhei “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, e uma coletânea com os maiores poetas românticos brasileiros.

Diferentes das atuais, projetadas minuciosamente para serem iguais nos condomínios modernos, as casas personificavam os donos.

Meu avô sempre com camisa branca de mangas compridas, abotoada desde o pescoço. Um gentleman de sabedoria inigualável.

Instigado, era extremamente atencioso. Discreto, quando não procurado evaporava como que por milagre do alto dos seus mais de 1.90 de altura.

Na garagem, um clássico sedã Aero Willys 2600, desenvolvido e lançado pela Willys-Overland do Brasil nos anos 1960.

Automóvel com linhas arredondadas, bancos únicos de couro que cabiam, confortavelmente, até seis pessoas, três na frente e três atrás. O carro tinha para-choques, calotas e retrovisores cromados e a parte superior das rodas pintadas de branco.

Na entrada do quarto dos meus avós um cabideiro com um chapéu Cury café-marrom, fabricado em Campinas, no interior de São Paulo.

Dentro de mim, conservo minha própria cristaleira. Um altar de seres agora intocáveis duplicados pelo espelho da memória.

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paulo rena

Paulo Renato Coelho Netto –  é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.

 

5 thoughts on “A cristaleira da avó. Por Paulo Renato Coelho Netto

  1. Degustei cada palavra, resgatei nos cantos da minha memória as lembranças daquela casa, um sacrário que frequentei na infância. Sua competente descrição constroi em mim nítidas imagens e cheiros do verde das plantas que faziam parte desse ambiente, com Dona Elvira e o Senhor Carlos, na regência do todo. Perfeito, Paulo querido, louvo seu talento!

  2. Degustei cada palavra, resgatei nos cantos da minha memória as lembranças daquela casa, um sacrário que frequentei na infância. Sua competente descrição constroi em mim nítidas imagens e cheiros do verde das plantas que faziam parte desse ambiente, com Dona Elvira e o Senhor Carlos, na regência do todo. Perfeito, Paulo querido, louvo seu talento!

  3. Degustei cada palavra, resgatei nos cantos da minha memória as lembranças daquela casa, um sacrário que frequentei na infância. Sua competente descrição constroi em mim nítidas imagens e cheiros do verde das plantas que faziam parte desse ambiente, com Dona Elvira e o Senhor Carlos, na regência do todo. Perfeito, Paulo querido, louvo seu talento!

  4. Quanta sensibilidade estampada num texto muito bem redigido que nos remete aos lugares mais privilegiados da memória. Lindo, verdadeiro e até poético. Parabéns pelo talento em traduzir o simples com tamanha beleza, profundidade e naturalidade.

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