
O corpo, o espelho e o silêncio. Por Meraldo Zisman
O CORPO, O ESPELHO E O SILÊNCIO.
No compasso imperfeito da humanidade ferida
Há um espelho no qual já não nos reconhecemos. Ele perdeu a ternura. Já não nos devolve o reflexo do ser, mas o molde do dever. Não mostra o que somos — exige o que deveríamos parecer. E assim, o corpo deixou de ser abrigo. Virou vitrine. Virou mercadoria. A alma, que antes morava nos gestos, agora se esconde entre filtros e ângulos favoráveis. A imagem nos invadiu. Tomou os lugares da palavra, do cheiro, do toque. Fez-se tirana. E nós, reféns de uma estética sem alma, vamos morrendo aos poucos — na pele que não se aceita, no peito que não encontra abrigo, no olhar que não se permite fragilidade. O drama contemporâneo não se passa mais no teatro. Ele se desenrola nas redes. Palco de sorrisos sem verdade, de corpos que mal respiram, de rotinas coreografadas para a inveja do outro. Cultua-se o café com espuma em forma de coração, mas ninguém repara que o coração de verdade — o que pulsa medo, desejo, angústia — já não sabe mais o que sente. Vivemos num mundo em que a saúde mental não tem palco. Fica atrás da cortina, ofegante, calada. Chorar é fraqueza. Cansar é falha. Mostrar tristeza virou desobediência civil. Há algo de insano num tempo em que até a dor precisa passar pelo filtro.
E os jovens… ah, os jovens.
Eles olham para essa vitrine de felicidade plástica e concluem que falhar é ser indigno. Que sentir é ser menor. Que viver com as imperfeições à mostra é crime contra a estética. E assim, se calam. Se anulam. E às vezes, sangram. Porque ninguém lhes contou que até as vidas mais belas carregam cacos invisíveis. Há casais que sorriem na foto e trocam silêncios cruéis à mesa. Famílias que se abraçam em datas comemorativas, mas não se escutam há meses. Corpos sarados, mas doentes de solidão. Rugas escondidas. Cicatrizes disfarçadas. A beleza virou sentença. E a imperfeição, um pecado moderno. Mas ainda há; tempo. Tempo de retornar. De olhar o corpo como morada e não como projeto. De olhar o outro com olhos de ternura, e não de julgamento. De devolver dignidade àquilo que não brilha: à ruga, à pausa, ao prato simples, ao domingo sem plano. Precisamos restaurar o direito de sermos humanos. De ouvir o silêncio sem medo. De acolher a tristeza sem pressa. De dizer: eu também não estou bem. Porque é no território da verdade, e não da aparência, que a saúde mental encontra abrigo. Num mundo que ensina a parecer, talvez o gesto mais urgente e revolucionário seja o de simplesmente ser. Ser inteiro, mesmo aos pedaços. Ser imperfeito, mas verdadeiro. E devolver ao espelho a sua antiga função: a de apenas refletir — sem corrigir, sem julgar, sem mentir. Apenas refletir um ser que, mesmo ferido, ainda insiste em florescer.
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Meraldo Zisman – Médico, psicoterapeuta. É um dos maiores e pioneiros neonatologistas brasileiros. Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Vive no Recife (PE). Imortal, pela Academia Recifense de Letras, da Cadeira de número 20, cujo patrono é o escritor Alvaro Ferraz.
Relançou – “Nordeste Pigmeu”. Pela Amazon: paradoxum.org/nordestepigmeu
Caro Doutor. Neste texto, o Sr. se superou. Sentimento puro, real. Gostei muito, e difundi.