jardim das incertezas

O Jardim das Incertezas. Por Alexandre Henrique Santos

… a perspectiva de que a realidade abriga camadas e dimensões inatingíveis através da percepção e do raciocínio humanos, não deixa de ser um convite ou até uma provocação para que o afeto nos leve onde a razão não consegue levar. Já vivendo a fase outonal da minha vida, decidi fechar os olhos e caminhar, através desse jardim de incertezas…

jardim das incertezas

 

Há dois fatores indispensáveis a uma vida relativamente feliz.     
Um é segurança e outro é liberdade...

Zygmunt Bauman

A objetividade da ciência e a neutralidade do cientista são dogmas da mecânica clássica que tiveram reconhecida longevidade. O físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976, Prêmio Nobel de Física de 1932) criou o Princípio da Incerteza, segundo o qual não existe verdade objetiva e o observador influi na observação. O escândalo, talvez comparado com chacoalhar um grande vespeiro, obrigou o conhecimento conservador a descer do pedestal da arrogância. Começamos a resgatar a proverbial humildade de Sócrates, que, sábio, dizia nada saber. E mesmo a do poeta que afirmou existir mais coisas entre o céu e a terra do que supunha a precisão das equações de Newton. Mas, ora, se o estatuto da dúvida se impôs ao mundo da matéria, abalado por ser “tangível e concreto”; não valeria ainda mais para o mundo das sutilezas, dos afetos e da psiquê?

A questão aqui é simples e pouco original, mas necessária. É como se até o início de 2020 nós tivéssemos uma percepção da realidade parecida com a visão da física clássica newtoniana. Como as peças do caleidoscópio, as circunstâncias mundanas se encaixavam e se sucediam, com maior ou menor adequação. Dia após dia pessoas adoeciam, umas se curavam e outras morriam. Cada um se empenhava em segurar a sua onda e tocar o barco adiante. Nada nos impedia de ir e vir, de marcar encontros e viagens. Planos se adiavam, planos se cumpriam; mas poucos se anulavam. Respirávamos farta e livremente o oxigênio da natureza, sem ter de pagar por ele. E contando também os infelizes, nós éramos felizes e não sabíamos.

A pandemia fez essa normalidade ruir. Primeiro, foram tremores num ritmo lento, com intervalos; mas logo depois, espasmos crescentes e acelerados, e então se fez silêncio: a gigantesca roda-viva parou. De uma hora para outra tudo o que nos dava segurança e previsibilidade, que nos afiançava proteção e conforto, passou a ser contingente e relativo. A realidade como a víamos, aparentando a solidez do aço, se volatilizou no éter. O tempo, que antes corria num desespero imparável, sumiu, nos deixando no limbo. Quem não sentiu a dolorosa ruptura desse freio inesperado? Qual ser humano na face do planeta não foi impactado pela violência dessa mudança?

Ainda seguindo a metáfora, do ponto de vista social, nem a primeira grande guerra (1914-1918), nem a gripe espanhola (1918-1920), nem o crack da bolsa de Nova Iorque (1929), nem a Segunda Guerra mundial (1939-1945) ou qualquer outra relevante ocorrência do século XX foi forte e sistêmica o suficiente para nos fazer deixar a mecânica clássica e adentrar o movediço território da física das partículas… O Covid-19, a banalização da morte e a conexão online da teia global, juntas, conseguiram essa proeza.

Parece que fomos dormir num cenário de materialidade insuspeita, de rotinas acomodadas; mas pela manhã fomos despertados por um estrondo. Nos levantamos de supetão. Constatamos aturdidos que a vida mudara de forma dramática, num zás, e que o pesadelo era um fato geral. A pandemia abriu e escancarou os nossos olhos para o que éramos e não sabíamos ou não queríamos saber que éramos: uma espécie animal extremamente frágil, bárbara, injusta e desigual. Enquanto escrevo essas linhas os Estados Unidos da América já vacinaram mais da metade da sua população; enquanto o continente africano sequer atingiu os 3%. Preciso dizer mais?

O isolamento social nos impediu de “sair para fora”; e, claro, fomos obrigados a “entrar para dentro”. Conviver bem com os outros em um espaço confinado – ainda que em família ou com pessoas queridas – exige, mais que flexibilidade, contorcionismo. A venda de livros de solução de conflitos e empatia cresceu com rapidez exponencial. Apesar disso, consta que o número de trombadas domésticas explodiu, e com ele a demanda de divórcios. Não disponho do registro de espelhos quebrados, mas me atrevo a afirmar que, para muita gente, ficar isolado, sozinho, tendo que lidar consigo mesmo, é o pior dos suplícios. Além do mais, quem já teve a doença pode tê-la de novo. Quem se vacinou pode se infectar. Quem fez o teste de antígeno sabe que o resultado é pouco seguro. Mesmo quem não tem sintomas pode estar doente. É impossível esgotar a lista dos flagelos e das experiências dolorosas. Ela abarca desde a rancorosa impotência diante de uma geladeira vazia e a família faminta, até a rancorosa impotência diante do impedimento daquela maravilhosa, caríssima e exclusiva viagem de férias. Que mundo desigual!

Atire a primeira pedra quem não se flagrou, nos últimos quinze meses, com inusual frequência, pensando na própria morte e na de pessoas próximas e distantes. Até na de gente  desconhecida. Bem, para morrer basta estar vivo – é o que nos ensina o inclemente, curto e grosso adágio popular. Contudo, uma coisa era viver no contexto seguro do antes-da-pandemia, no que agora começa a se chamar “velha normalidade”; e outra bem diferente é viver no atual clima de fugacidade; é sentir diariamente o risco de contato com o vírus que já cancelou, só no Brasil, quase 450 mil CPFs – peço perdão pela infeliz referência, mas o genocídio já é História.

Por fim, cabe a questão: como apreender essa “nova” e tão fugidia realidade? Honestamente, não tenho certeza da resposta. Mas sinto que o antigo e sapientíssimo conselho dos AAs, Alcoólicos Anônimos, pode servir como uma luva para o momento: viva um dia de cada vez. E de preferência, trate de vivê-lo com resiliência e senso de gratidão, pois não sabemos nosso lugar na fila, e o que foi jamais voltará a ser.

Considerado o fundador da Teoria Quântica, Max Planck (1858-1947, Prêmio Nobel de Física de 1918), inspirador de Heisenberg, nunca se deixou seduzir pela vaidade do conhecimento, e certa feita reconheceu: “a ciência é incapaz de resolver os mistérios finais da natureza, porque nós somos parte da natureza e, portanto, do mistério que tentamos resolver”. Assim, a perspectiva de que a realidade abriga camadas e dimensões inatingíveis através da percepção e do raciocínio humanos, não deixa de ser um convite ou até uma provocação para que o afeto nos leve onde a razão não consegue levar. Já vivendo a fase outonal da minha vida, decidi fechar os olhos e caminhar, através desse jardim de incertezas, confiando piamente na poesia:

Cada qual e todo mundo aonde está quer ser feliz;

só o Amor é o caminho, e o descaminho é por um triz!

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Foto: @catherinekrulik

*Alexandre Henrique Santos – Atua há mais de 30 anos na área do desenvolvimento humano em e para grandes corporações.  É terapeuta e coach. Mora em Madri e realiza workshops presenciais e à distância. É meditante, vegano, ecologista. Publicou O Poder de uma Boa Conversa e Planejamento Pessoal, ambos editados pela Vozes..

Contato: alex@ndre.com.br

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