Centauros na Corte. Por José Paulo Cavalcanti Filho

CENTAUROS NA CORTE

JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO

…Em resumo, e mesmo depois de condenados, alguns criminosos ficam soltos e outros presos. Embora sejam, todos, considerados pelo Supremo inocentes. Difícil entender. É como se estes ministros fossem centauros do século XXI. Contraditórios. Incoerentes. Insensíveis à voz que vem das ruas. Faltando só lembrar que, na mais famosa lenda sobre eles, o centauro Nesso tenta violar Dejanira. E é morto pelo noivo dela, Héracles, com uma flecha. A história, para alguns centauros, nem sempre acaba bem….

Centauros são “seres monstruosos, meio homens e meio cavalos”, segundo Pierre Grimal (Dicionário da Mitologia). Nas representações clássicas, tinham busto e 2 braços de homem, mais corpo e 4 patas de cavalo. Ambíguos, muitas vezes se apaixonavam por mulheres. Talvez por não ser homens, nem cavalos, a incoerência lhes corria no sangue. Essa imagem me veio, semana passada, quando alguns ministros do Supremo inventaram uma fórmula torta para soltar Lula. Sem coragem para deferir um dos 144 Habeas Corpus apresentados por sua defesa, decidiram mudar a jurisprudência da Corte.  Ao preço injusto de pôr, nas ruas, milhares de criminosos comuns.  Agora, não há mais prisão automática em Segunda Instância. Diferente de todos os 193 países da ONU. Como se considerassem que nossa democracia é a mais perfeita de todas. Problema é que só aqui traficantes, assassinos e corruptos permanecem nas ruas depois de condenados. Como se isso fosse nada. Todos os outros países estão errados, para os ministros. E só o Brasil, agora, certo.

Problema é que deveriam levar essa tese às suas últimas consequências. Pessoas não podem ser presas antes de julgadas pelo Supremo.  Ponto. Ocorre que, talvez por receio do clamor popular, admitem variações na regra. Como condenados pelo Tribunal do Júri, que começam a cumprir suas penas imediatamente. Ou aqueles com prisões provisórias, que vão à cadeia sem ter sido sequer condenados. O Congresso poderia resolver isso alterando o art. 283 do CPP. Se quisesse, de verdade, mudar algo. Mas finge, ao preferir votar uma PEC. Com maior quórum. Vai ser quase impossível. E é o que deseja, no fundo, boa parte dos Deputados e Senadores. Muitos, hoje, respondendo processos.

Em resumo, e mesmo depois de condenados, alguns criminosos ficam soltos e outros presos. Embora sejam, todos, considerados pelo Supremo inocentes. Difícil entender. É como se estes ministros fossem centauros do século XXI. Contraditórios. Incoerentes. Insensíveis à voz que vem das ruas. Faltando só lembrar que, na mais famosa lenda sobre eles, o centauro Nesso tenta violar Dejanira. E é morto pelo noivo dela, Héracles, com uma flecha. A história, para alguns centauros, nem sempre acaba bem.

NOTA: Para melhor compreensão do tema, peço licença para transcrever trechos de coluna que publiquei, no começo do ano, com observações que talvez possam interessar não iniciados.

 

  1. Imagem relacionadaO MITO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal vai decidir se prisões podem se dar em Segunda Instância. À luz do art. 5º, LVII da Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. O que exigiria julgamento em quatro instâncias, segundo alguns ministros. A partir de uma regra de Presunção de Inocência que, no mundo real, pede reflexão mais ampla.

 

  1. Imagem relacionadaNOSSA HISTÓRIA. No Brasil, prisões sempre se deram em Primeira Instância. E não apenas desde o Código de Processo Penal de 1941, como é usual ler nos jornais. Passando a ocorrer em Segunda Instância, na verdade, só a partir da Lei Fleury (5.941/73). Uma boa lei. Em plena Ditadura, quem diria? Quando foi admitida, limitadamente, apenas para réus primários e de bons antecedentes. A ideia de mais uma instância nasceu, não para proteger pessoas possivelmente inocentes, mas como benefício a um torturador relés.

A regra geral da prisão em Segunda Instância, que não consta de nenhuma lei, acabou sendo construção jurisprudencial do Supremo. Por uma razão técnica. É que o recurso nas decisões em Primeira Instância, Apelação, tem efeitos Devolutivo (fazendo com que o assunto deva ser rediscutido por Tribunal) e suspensivo (a decisão monocrática não produz efeitos, até decisão desse Tribunal). Enquanto os recursos subsequentes, especial e Extraordinário, contra decisão já desse Tribunal, apenas têm efeito Devolutivo. Determinando seja o caso reexaminado por Tribunais Superiores – STJ e Supremo. Sem interferir nas condenações. Que devem ser imediatamente executadas, para evitar o risco das prescrições. E sem que se possa rediscutir provas, por conta das Súmulas 7 (do STJ) e 279 (do Supremo). A sistemática não foi alterada com a Constituição de 1988. Suspensa em breve interlúdio (no Mensalão, quando alguns políticos muito ligados ao poder passaram a ser condenados) no HC 84.048, em 2009, voltou a se dar com o do HC 126.292, em 2016 (por 7 votos a 4).

 

  1. Imagem relacionadaA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA É UM VALOR ABSOLUTO? Um homem inocente não pode ser preso. Aqui se tem a essência da tese. Só um princípio. E, não, uma regra. Problema é que para valer, como se anuncia, ela não pode aceitar uma única exceção. Mesmo beneficiando assassinos, estupradores, pedófilos, o louco que ameaça matar a mulher, os que constrangem testemunhas ou destroem provas. Ninguém deve, em qualquer situação, ser preso antes do Trânsito em Julgado pelo Supremo. Posto ser inocente, segundo a Constituição.  Essa é a tese de alguns ministros do Supremo. Parece razoável ir tão longe?

Os assassinos de Marielle e Anderson, por não terem sido ainda condenados pelo Supremo, devem ficar soltos? Para voltar a matar? Quantas vezes quiser? Ou fugir? Quem sustentar a tese, obrigatoriamente, vai ter que defender isso. Que esses milicianos devam permanecer livres. Por serem inocentes. Traficantes também. Livres. Desde modestos vendedores de crack até seus chefes.

É usual recusar esse raciocínio sustentando que traficantes e afins não ficarão soltos porque terão contra si prisões, preventivas ou Temporárias, que seriam decretadas por Juiz (ou Tribunal). Só que, caso se constate depois ser o cidadão inocente, e alguns dias (ou mais tempo) terá passado preso. O que seria inaceitável, para os defensores da tese. Problema é que, quando se entender que possam valer essas prisões provisórias e, então, a tal Presunção de Inocência não deve mais ser considerada um valor absoluto.

 

  1. Imagem relacionadaCOMO CONCILIAR O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA COM A PRISÃO ANTES DO JULGAMENTO PELO SUPREMO? Considerando o interesse coletivo, pode (e mesmo deve) haver a possibilidade de algum tipo de prisão, antes da condenação não ser mais recorrível (em Quarta Instância). Quando essas responsabilidades se formarem beyon reasonable doubt (além de qualquer dúvida razoável) – assim se diz, mesmo nos textos de doutrina em português, numa referência à jurisprudência norte-americana. Antes mesmo de qualquer manifestação do Supremo. Inocentes em tese, segundo a Constituição. Mas presos, por corresponder ao interesse coletivo. Simples assim. Cabendo aos defensores da Presunção a inglória missão de tentar explicar como consideram inconstitucional a prisão por Tribunal, depois de processo regular (em duas instâncias), e constitucional a prisão provisória. Quase sempre decretada por um solitário Juiz. E sem sequer uma sentença, para isso. Que usualmente as prisões são decretadas antes.

 

  1. Imagem relacionadaTRATADOS. A tese, de resto, é compatível com os princípios internacionais da Presunção de Inocência. Nenhum tratado (ou sua jurisprudência) indica ser necessário mais que Segunda Instância para início do cumprimento da pena. “Duplo grau de jurisdição”, assim está nos textos. Que se tem com o Juiz de instrução, quando a prisão se dá em Primeira Instância. Ou com os Tribunais funcionando como instância revisora, quando se dá em Segunda Instância.

Assim está, por exemplo, nas regras da Convenção Americana de Direitos Humanos, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de San José da Costa Rica. Sem contar que, nas democracias maduras, condenados começam a cumprir suas penas já em decisões de Primeira Instância. Como Estados Unidos (com sentence of imprisonment garantida pelo US Criminal Code), Inglaterra (reiterada pelo Criminal Justice Act de 2003), Alemanha (em respeito à Rechskraft), Canadá, Espanha, Franca. E ninguém, por lá, jamais considerou isso ilegal ou antidemocrático. Nos 193 países da ONU é assim. Vale observar, em amor à verdade, que Portugal (em raríssimos casos), permite recurso ao Tribunal Constitucional Português. E Itália (apenas em situações especialíssimas), também. Em nenhum dos dois países, e isso é relevantíssimo, um sistema que se opera indiscriminadamente para todos os casos – como agora se pretende aplicar, por aqui.

 

    1. Imagem relacionadaNÚMEROS. As consequências práticas deste cenário estão num estudo recente da Coordenadoria de Gestão da Informação (01/01/2009 a 19/04/2016) do STJ. Absolvições, pelo STJ, correspondem apenas a 0,62% dos casos. E, no Supremo, a somente 0,035%. Repetindo, 0,035% dos casos. Só 9 absolvições, em 25.707 recursos. Absolvições que se dão, não custa lembrar, por serem inocentes os réus. Mas, invariavelmente, por questões técnicas no processo – mais comuns sendo a prescrição ou o não cumprimento dos prazos legais no processo.  Cabendo ainda em tais situações, para corrigir eventuais injustiças, o recurso ao Habeas Corpus. Sobretudo quando o julgamento anterior afronte a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Sobre a tragédia que seria uma alteração desse entendimento por conta de tão poucas absolvições, passo a palavra ao Ministro Luiz Roberto Barroso: “Subordinar todo o sistema de justiça a índices deprimentes de morosidade e ineficiência para produzir este resultado é uma opção que não passa em nenhum teste de razoabilidade ou de racionalidade”.

 

  1. Imagem relacionadaO FUTURO. Temos 736.948 presos no país, senhores (entre eles, 1.774 estrangeiros). Mais de metade, sem sentença definitiva no Supremo. Queremos que vão tantos para as ruas? É isso? Com prisão provisória são 299.060 mil (CNJ, agosto 2018). Claro que precisamos julgar com maior rapidez. E melhor. E claro que prisões provisórias não devem se eternizar. Só que, para ser coerente, quem acreditar no princípio da Presunção de Inocência deve pleitear que ninguém mais seja preso, antes do pronunciamento definitivo do Supremo. Posto não ter sentido prender (mesmo provisoriamente) se são inocentes, como proclamam.

O ministro Lewandowski, em fins do ano passado, libertou o super-traficante Galo. Condenado, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a 60 anos de prisão. Fez isso para se proteger do voto que daria mais tarde, para soltar Lula. Galo, como previsível, já voltou ao seu submundo. “Livre como um táxi”, diria Millor. E imensamente feliz com a generosidade ministerial.

Só no Supremo, há 4.821 Habeas Corpus pendentes de julgamento (STF, 8/2/2019). Acusados confessos, estupradores, traficantes, milicianos, pedófilos, corruptores e corruptos, todos soltos, é o que se pretende?

P.S. E a partir de agora, caro leitor, perdão mas paro de falar no assunto. 
Para não ter um infarto. De raiva. Ou desalento. Ou vergonha.

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José Paulo Cavalcanti FilhoÉ advogado e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade. Vive no Recife.

 

 

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