ALGO - INVERNO

Há algo estranho no ar. Por Antonio Contente

Algo…Antes que o fogo final venha, saiba do bom de reviver, apenas na dimensão do imponderável, os irrealizados amores antigos — nós envelhecemos, mas o ser amado permanece jovem. Ela virá, com os cabelos curtos e os olhos cintilantes. Estalará  riso juvenil e sua voz repetirá pequenas juras…

ARMAGEDON - ALGO ESTRANHO NO AR

Diante do muito que está sendo escrito ou ainda será sobre terremotos, tsunamis, tufões, furacões, tornados, ameaças de contaminações, atômicas e outras que seguem ocorrendo, não há como não concordar que se tornam cada vez mais severas as consequências sobre nós do que está redigido na ala trágica das estrelas. Alguém, por exemplo, chamou ainda ontem minha atenção para as catastófricas chuvas sulinas. Lá atrás, em São Paulo e Petrópolis, também despencaram águas que andaram matando mais de uma centena de pessoas. E olha que desde o começo dos anos 60 quando eu acompanhava, como repórter, os aguaceiros paulistanos e suas consequências, tudo indicava que, de fato, os dilúvios estavam a crescer, crescer… Li, há dias, comentário, num jornal inglês, em que o analista afirma que as peças colocadas no quadrilátero onde se desenrola o “Jogo do Fim do Mundo” indicam que o armagedon pode estar mais perto do xeque-mate do que muita gente pensa. Em meados do ano passado alguns místicos e até não místicos afirmavam que a data do big-bang do nosso “bye bye” seria agosto. Não foi; porém, mais uma peça no citado tabuleiro do colega britânico se moveu empurrando a peleja a favor do término dos tempos a partir do que acontece aqui ou ali. Até o eixo da pobre terra, garantem, já se deslocou. E o fundamental nisso tudo, para muitas percepções, é o aquecimento global. Esqueçamos a peste do Coronavírus.

A partir daí, amigos, é lícito supor que as labaredas do instante derradeiro crepitam. Todavia, antes que cheguem definitivamente sejamos cúmplices das manhãs. Vamos cumprir, sob este céu azul que mesmo no inverno torra o asfalto da avenida Francisco Glicério, as passadas nos caminhos em busca da essência. Na verdade, é bom estarmos à mercê da luz e das esquinas. Dobremos, para a praça que é dos pombos, dos velhos e das crianças. Tais logradouros, vocês sabem, são símbolos da alegria, da liberdade, mas também do tédio. Para fugir dele, andemos, não para chegar, sim desviando à procura de lugar nenhum, que é onde moram as verdades e as soluções.  Depois, poderíamos até perguntar o que faríamos se, de fato, encontrássemos cada uma delas. Fiquemos, então, com a criatividade das indagações e com a certeza de que as melhores respostas são as que nunca foram dadas. Antes que o calor das labaredas finais chegue, cuja antevisão está neste suor que empapou minha camisa ao subir a pé a avenida Anchieta após madrugada gelada; busquemos, sem ânsias, conformações.

 É na cumplicidade das manhãs que somos passíveis do milagre das melodias.  Pois é então que, de repente, poderemos ser surpreendidos pelo som do “Concerto para Clarineta”, de Wolfgang Amadeus, a sair de uma janela entreaberta. A música virá até nós pelos jardins e pelas flores, pelos pássaros e pelas gramas que amaciam passos. Pensemos, na cumplicidade com as manhãs antes que as labaredas definitivas venham, sobre as possibilidades de contatos com as sombras do passado. Veja-se, naquela rua, a encontrar com um amor do há muito tempo, exatamente aquele sobre o qual você milhares de vezes se perguntou: “O que faria se, de repente, topasse com ela”? É verdade que os amores vão, porém o significado deles fica para sempre. Os amores que não eternizam a luz dos halos que se fincaram nos dias, não foi amor; do mesmo jeito que o relâmpago que não ultrapassa as idades deixa de ser raio e nunca se desmanchará com as cores de um arco-íris em caleidoscópio.

Antes que o fogo final venha, saiba do bom de reviver, apenas na dimensão do imponderável, os irrealizados amores antigos — nós envelhecemos, mas o ser amado permanece jovem. Ela virá, com os cabelos curtos e os olhos cintilantes. Estalará  riso juvenil e sua voz repetirá pequenas juras. Tudo emoldurado pelas saia plissada, a blusa branca, as mãos em concha postas para receber pingos das essências do infinito ou das pétalas desfeitas. Que são, poucos sabem, o adubo das quimeras.

Sou cúmplice desta manhã pouco fria apesar da estação vigente e cumpro, antes que o fogo do aquecimento final venha, em passos calmos que mal tocam as pedras das calçadas, meu rumo e meu destino. Paro em frente de casas que não existem mais e consigo reconstruí-las. Recoloco janelas, portas, e, com mãos de dedos subitamente ágeis, ponho em galhos ancestrais dos jardins os passarinhos que fornecem o sonoro invólocro para as luzes e as opacidades. Estão novamente ao lado dos canteiros os risos e o colorido do gestual das meninas. E ecoam, nos ouvidos que são capazes de ouvir pelo efeito da intimidade que precisamos manter com as heras e as eras, os belos versos de Nat King Cole a cantar “The Very Thought of You”.

E afinal se você, como eu, consegue navegar em certas intimidades do leve rumor das ampulhetas, talvez consiga captar o que me disse, certa vez, uma amiga num inverno em que choveu.

         — É julho. Mas, com o ar molhado depois da garoa, é como se fosse uma linda manhã de setembro.

Sim, de setembro. Necessariamente de setembro. Ela aprendeu a buscar significados no calendário das emoções primeiras. Que tenha tempo de usufruir. Antes que o anunciado fogo final — que tornará Campinas e o mundo apenas nada — venha. Enfrentemos, como deve ser enfrentado, o aquecimento global. Ou as águas de um fantástico tsunami que inundará Glicérios, Cambuís, Chácaras da Barra e largos do Rosário. Morimbundo planeta azul, onde se criaram e viraram pó algumas das minhas pobres ilusões…

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Antonio ContenteANTONIO CONTENTE

Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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