
Caxemira, uma crise no topo do mundo. Por Fernando Gabeira
Caxemira…Com os anos, percebi que meu retiro espiritual estava baseado numa área explosiva, um grande perigo para a estabilidade mundial…
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, 19 DE MAIO DE 2025
Desembarquei em Srinagar, uma cidade famosa pelas suas pensões no Lago Dal, as houseboats, que você alcança com pequenas embarcações, as shikaras. Dali, viajei uns 60 quilômetros até Gulmarg, que no inverno vira estação de esqui. Vi tropas de burros subindo a montanha, tocadas por homens vestindo sobretudos. A quietude do lugar, a sensação de estar num ponto alto do mundo eram fascinantes.
O problema acontecia quando voltava a Srinagar: sempre havia manifestações com a polícia quebrando o pau literalmente, porque eram cassetetes de madeira. Aos poucos, a viagem espiritual foi sendo atropelada pelo caminhão da História. O Kashmir virou Caxemira, espaço de um drama que começou antes da independência da Índia, mas se tornou agudo com a repartição do país.
Descobri que o Partido do Congresso, liderado por Gandhi e Nehru, queria um país unificado apesar das diferenças: um terço dos habitantes era muçulmano, e seu líder, Mohamad Ali Jinnah, queria um país próprio. Em 1947, a partição acabou acontecendo, movendo milhões de pessoas e, infelizmente, matando milhares em razão de um problema mal resolvido.
A Caxemira situada na fronteira teve destino singular. A maioria de sua gente era muçulmana, mas o marajá que a dirigia, Hari Singh, era hindu e, diante do avanço das milícias, pediu socorro. Nehru aceitou enviar tropas desde que o reino assinasse uma adesão oficial à Índia. Esse gesto desfechou o primeiro conflito, que terminou com um cessar-fogo cindindo a Caxemira em duas. Sucederam-se pequenos conflitos militares, com mais ou menos 70 mil mortos. A guerra só terminou em 1971, com um cessar-fogo.
As tensões nunca acabaram. Além da divergência entre Índia e Paquistão, a China também detém um pedaço da Caxemira. Os chineses controlam uma região semidesértica, Aksai Chin, que tem para eles importância estratégica, marcada pela construção de uma estrada que liga o Tibete à província chinesa de Xinjiang.
Considerando que Índia e Paquistão têm armas nucleares e nunca se entenderam sobre a Caxemira, que permanece majoritariamente muçulmana, com os anos percebi que meu retiro espiritual estava baseado numa área explosiva, na verdade um grande perigo para a estabilidade mundial.
O atentado aos turistas matou 26 pessoas. Poderia ser uma delas, se acontecesse no início do século, antes de me inteirar das condições históricas do lugar. Se pudesse, gostaria de voltar e, agora sim, escrever e trazer imagens da Caxemira. Meu tema não seria o Himalaia, mas o Rio Indo, que nasce no Tibete e atravessa a região. Com seus afluentes, o rio é um ponto nervoso na crise. Tanto que a Índia, depois do atentado, não só bombardeou posições no Paquistão, como ameaçou cortar a água do vizinho.
China e Paquistão têm um tratado de repartição de águas, e ele é um instrumento em que os países conseguem cooperar. A Índia pode construir hidrelétricas, mas teoricamente não pode deixar seu rival sem água. Na verdade, se isso acontecer, o Paquistão será atingido frontalmente na segurança alimentar, pois suas plantações se concentram no Vale do Pendjab.
A Caxemira que passei a ver um pouco mais de perto, com o tempo, continua sendo um lugar muito bonito com seus lagos, vales e o próprio Himalaia. Mas é um nó político. No princípio, depois de 1947, a Índia reconheceu alguma autonomia: a região tinha uma bandeira própria e leis que impediam venda de terras para quem não fosse do lugar. Mas, numa área com maioria muçulmana tão pronunciada, fala-se muito num plebiscito para que o povo do lugar defina seu caminho. Isso a Índia ainda não aceita.
Não esqueço que tomei chá à beira de um vulcão político que não só rachou a Índia, como produziu dois Paquistões, o Ocidental e o Oriental, que viria ser Bangladesh. Como diz a canção: é preciso ficar atento e forte.